A montagem
Ao
instalar-se a Universidade do Distrito Federal (UDF)
fez-se necessário pensar em uma biblioteca que pudesse atender às
necessidades de pesquisa e de incremento à cultura, valores necessários à
formação docente de professores secundaristas e universitários. Ainda que a
formação profissional de professores secundaristas no Brasil fosse tardia, como
o foi também em Portugal, também aqui o desenvolvimento deste processo se deu
através de um conjunto de valores que, elencados, davam a medida da formação
profissional, que abarcava crenças, valores éticos e o perfil almejado (PINTASSILGO,
2011, p.5).
No
que concerne ao perfil desejado, era esperado, segundo o Decreto nº 5.513
, de 4 de abril de 1935, assinado pelo
Prefeito do Distrito Federal Pedro Ernesto
, que a UDF:
promovesse e estimulasse a cultura de
modo a concorrer para o aperfeiçoamento da comunidade brasileira; b) encorajasse
a pesquisa científica, literária e artística; c) propagasse as aquisições da
ciência e das artes, pelo ensino regular de suas escolas e pelos cursos de
extensão popular; d) formasse profissionais e técnicos nos vários ramos de atividade
que as suas escolas e institutos comportarem; e) providenciasse a formação do
magistério, em todos os seus graus.
A
Biblioteca estava instituída, na implementação da UDF, como instituição
complementar
,
definida no Artigo 3 daquele Decreto de criação, como de
experimentação pedagógica, prática de ensino e pesquisa e difusão
cultural.
Assim,
fez-se necessário que a biblioteca fosse, naquela estrutura, o elemento
impulsionador, e materialmente concreto, dos valores e ideal anisiano
que ajudariam a formar os
docentes. De outro modo, para a França, a biblioteca teria, com a cultura
francesa ali difundida, um espaço privilegiado para que os escritores franceses
transmitissem sua filosofia, seu pensamento, suas mais recônditas ideias.
Tantas foram
as doações francesas que, segundo a correspondência nº 7/BU, de 19 de maio de
1938:
desde a data de sua instalação, em
fevereiro de 1936, até o encerramento do ano escolar de 1937, [que]a biblioteca
da Universidade do Distrito Federal não permitiu que os funcionários que nela
exerciam suas atividades desviassem seus esforços da constituição de seu núcleo
inicial.
A instituição pretendia,
como formadora de professores, ser um núcleo
de formação intelectual do país (FÁVERO, 2004, p. 148). A biblioteca, ali, era então a materialidade da
cultura (MOGARRO, 2011) entendida como
o meio pelo qual uma sociedade
fortemente hierarquizada mantinha um código de critérios definidos [e] assegurava
sua homogeneidade com base em uma elite relativamente estável (CERTEAU, 1995,
p.103).
Por outro lado, a
biblioteca era também um elemento transformador do processo de apropriação da
cultura que se desenvolvia na UDF. No Brasil, desde a colonização, a cultura se
baseava no tripé biblioteca, teatro e museu porque atingia e era desfrutada,
apenas, por aqueles indivíduos das classes sociais mais abastadas, que pudessem
instruir-se (MILANESI, 1997, p.23). Assim, realçar qualquer destes itens era ressaltar
a cultura institucional. De que modo este objetivo foi consolidado?
A biblioteca
foi montada mais pelas doações que recebeu, principalmente da França, do que
pelos parcos recursos da Prefeitura do Distrito Federal ou pelo fundo Affono
Penna
. Segundo Bergson (2006, p.
268) a
s obras dos filósofos franceses
foram escritas para a humanidade e, sendo a França o modelo civilizatório
brasileiro, as doações bibliográficas, que estamos considerando aqui vozes
francesas, foram julgadas pelo bibliotecário da UDF Gastão Cruls, médico,
escritor e apaixonado pela literatura,
um
valioso préstimo (CRULS, 1936, Súmula nº 1/BU) à nova universidade.
Os primeiros
livros a chegar foram recebidos pelo bibliotecário que, provavelmente com
prazer, desfazia os embrulhos meticulosamente feitos. Ele havia sido empossado
em 25 de janeiro de 1936 para iniciar a biblioteca da Universidade do Distrito
Federal. Ao chegar, já entusiasmado, o bibliotecário encontrou alguns livros e material de estudo [que
se havia conseguido, quer por] créditos
especiais, abertos no exercício de 1935, quer por uma ou outra oferta feita à
Universidade (ibidem).
Havia na
Biblioteca que a UDF deveria montar 73 obras, distribuídas em 138 volumes, 94
quadros murais para a Escola de Ciências e 5 estampas coloridas para o
Instituto de Artes, de acordo com o relatório do bibliotecário à Reitoria da
UDF.
Houve então,
por parte dele e de outros funcionários da Universidade, um trabalho exaustivo
para constituir o núcleo inicial daquela biblioteca. Todos desempenhavam outras funções que não aquela de escolher, receber
e catalogar os livros, mas mesmo assim,
embrenharam-se no trabalho
enfadonho de procurar nos catálogos
editoriais, nos repositórios bibliográficos e demais fontes de informação (UDF,
Relatório nº 7/BU de 19 de maio de 1938)
Indicações bibliográficas
A função da Universidade é [...] única e
exclusiva. Não se trata somente de difundir conhecimentos. O livro também os
difunde. Não se trata somente de conservar a experiência humana. O livro também
a conserva. [...] Trata-se de manter uma atmosfera de saber, para se preparar o
homem que o serve e desenvolve [...] de conservar o saber vivo e não morto, nos
livros ou no empirismo das práticas não intelectualizadas. (Boletim da UDF,
1935, p.15)
As sugestões dos
livros a serem comprados, com verba francesa ou do fundo de doação Affonso
Penna
vinham em catálogos
remetidos pela França onde professores e o bibliotecário Cruls escolhiam os
livros que não tinham sido doados e seriam, então, comprados com dinheiro do
fundo Affonso Penna.
Os professores
dos diferentes cursos da Universidade indicaram os livros que conheciam e que
consideravam necessário ao seu magistério naquela universidade que se propunha
a ensinar a meninos, a rapazes, a mestres (PEIXOTO,1936), aumentando ainda mais o trabalho a ser feito.
Concomitante à chegada de livros,
previamente escolhidos, afluíam ao
serviço de leitura e consulta os alunos e docentes interessados (Relatório
nº 7/BU op. cit.). O que demonstrava
o interesse e a curiosidade da leitura entre todos que não tinham fácil acesso em
outro lugar no país, aos exemplares ali depositados.
Em abril de 1936,
chegou à biblioteca que ainda se constituía, uma valiosa carga vinda de Paris,
nenhuma dádiva poderia ter sido
feita[...] cuja biblioteca se inicia sob os melhores auspícios [..] pelo que há
de mais nobre e mais alto tem produzido o preclaro pensamento francês. (UDF,
Lista de Livros, nº 7/BU, 4 de maio de 1936)
Era uma
remessa que chegava à Universidade vinda de sua co-irmã francesa, intermediada
pelo professor recém-contratado pelo reitor Afrânio Peixoto, em sua viagem a
Lisboa e a Paris, Émile Bréhier. Segundo o relatório do bibliotecário, em 1936,
a Universidade de Paris enviou 495 obras, em um total de 864 volumes.
Não havia
sequer estantes que comportassem os livros. De pronto providenciou-se
mobiliário para que se iniciasse a catalogação sistemática. Comprou-se uma
estante Fiel, de aço, seguindo-se logo depois, outra compra e mais outra, de
forma que cinco estantes foram adquiridas para armazenar os livros oriundos da
Universidade de Paris.
Era
pensamento [do bibliotecário e seus auxiliares] levar adiante o trabalho de fichamento e localização dos volumes (ibid).
Isso não pode ser feito, pelo menos da maneira rápida que se pretendia. A todo
o momento chegavam encomendas a serem desembrulhadas, a serem listadas, a serem
precariamente catalogadas.
Com a saída do
professor Afrânio Peixoto da reitoria, em solidariedade ao amigo Anísio
[9], assumiu o reitor Dr. Affonso Penna Júnior que, graças a seu círculo de sociabilidade,
e a sua própria solidariedade ao criar o Fundo Affonso Penna, conseguiu ainda
mais obras para a biblioteca universitária.
As obras foram subdividas pelo
bibliotecário Cruls em pequenas bibliotecas como a Bibliothèque Larousse, com obras de Racine, Balzac, Moliére,
Chateaubriand, Stendhal, Montesquieu, Victor Hugo, dentre outros; os Clássicos Larousse, com obras de Comte,
La Fontaine, La Bruyère, Lamartine, Boileau, Marivaux, Thierry, Fénelon,Voltaire,
G. Sand,dentre outros; Peuples et
Civilisations, com obras de Fougères, Roussel, Piganiol, Albertini,
Halphen, Pirenne, Hauser, Saint-Léger, Lefebvre, Renouvin, Lalande,
Aulard, dentre outros; Bibliothéque
de La Faculté dês Lettres de Paris, com obras de Hauvette, Luchaire,
Dauzat, Zivy, Boutrox, Luchaire, Lafaye, Courmot, Verrier, Virgile, Cartault,
dentre outros e a Bibliothèque d’Histoire
Littéraire et de Critique, com
edições vindas da Garnier.
As razões francesas
A
França sempre procurou se caracterizar como expressão máxima da civilização, e
o livro, até os anos de 1940, era o instrumento que distinguia os cultos
daqueles que não o eram (MILANESI, 1997, p.49), deste modo se aliavam
intenções: daquele país e da universidade em propagar a cultura e influência
francesa, ainda que as metas de cada um fossem diferenciadas.
Ao discutir as
trocas simbólicas e o papel da linguagem nestas trocas, Bourdieu (1983, p.161)
demonstra que a língua, não importa se falada ou escrita, não é só um
instrumento de comunicação ou mesmo de um conhecimento, mas um instrumento de
poder. E a língua
francesa, entre os cultos no Brasil, era o idioma referencial, até mesmo na
linguagem cotidiana, para quem pretendia demonstrar aos outros o conhecimento e
a cultura. Assim, era usada, retoricamente, não só por quem dominava o idioma
como por aqueles que desejam aparentar erudição.
As relações culturais franco-brasileiras eram consistentes,
particularmente nos anos de 1930, com a criação do Institut Franco-Brésilien de
Haute Culture
(FERREIRA,
1999, p. 286). Deste modo, poder compor a biblioteca de uma Universidade
que pretendia consolidar-se como centro de formação intelectual do país, era
ter o respaldo do poder cultural que a França detinha, com suas missões
culturais, desde o século XIX, no ideário brasileiro.
Estaria a
Universidade do Distrito Federal privilegiando, na formação cultural dos
professores secundaristas e universitários brasileiros, ainda, a matriz de
civilização francesa? Ou, as doações
apenas estavam indo de encontro à ênfase
da ciência básica e ao saber desinteressado (FÁVERO, 2008, p.171) que
Anísio Teixeira pretendia para a UDF?
A oferenda
francesa englobou mais de duas mil obras, de autores nacionais nas áreas de
Filosofia, Literatura, História, Geografia, Literatura francesa, etc. que
refletiam sua adequação à formação de professores, a pesquisa e a cultura.
Outros professores franceses, contratados pelo reitor, também sugeriram livros que
foram doados ou adquiridos pela UDF, do mesmo modo que o fizera o bibliotecário
que, por catálogos franceses, fazia suas escolhas. Até abril de 1938, o setor
recebeu 2.289 obras, doadas ou compradas pelo fundo Affonso Penna, à Livraria
Quaresma, pelo preço único por unidade de
10$000 (Relatório nº 13/BU, op. cit.).
Assim, várias
pessoas se acreditavam credenciadas, ou legitimadas, para mediar cultura e
conhecimento na UDF a partir da biblioteca institucional, entre estas os
professores franceses contratados pelo reitor Afrânio Peixoto.
Era também necessário imprimir à biblioteca
modernidade, civilização e refinamento necessários
de modo a tornar, a partir desta materialidade cultural, a UDF uma universidade
promotora de cultura. Segundo Bergson (2006) as obras dos filósofos franceses foram
escritas para a humanidade (p. 268), e
sendo a França o modelo civilizatório, era natural que, para a diferenciação
pretendida, o berço civilizatório ocidental fosse visitado.
Mogarro (2011, p. 162) explica, comparando a apropriação
das leituras na formação de professores em Portugal e Brasil, que as coleções
editoriais para professores, este o fim último da biblioteca da UDF, têm uma
dupla intervenção cultural: a editorial, que leva em conta a destinação dos
livros, sua circulação e o mercado e a, no campo da pedagogia, que privilegia a
seleção dos autores e o que se pretende que, na formação de professores, se
aprenda e, posteriormente, seja difundido.
A França, através de
sua política externa, preocupava-se, principalmente com as dificuldades por que
passava o mercado editorial francês, com pífia produção naquele momento, a quem
interessava fazer produzir, por outro lado, os catálogos encaminhados
privilegiavam autores franceses que o país difundiria ainda mais na América do
Sul.
A UDF, criada a partir de inspiração anisiana, trazia em
seu bojo, a temática da tradição da formação professoral, ainda que com o caráter
inovador da Escola Nova, tornando desta forma a grande novidade da inclusão da
pesquisa como método do ensino da formação docente, uma
inovação aparente (PINTASSILGO, 2011, p.22)
A tradição de ver a
formação docente impregnada de missões como o de articulá-la com a liberdade, o
sonho, a esperança são também traços marcantes do discurso desta Universidade
criada para ser diferente, porque moderna, dentro de um contexto aparentemente
sem tradições.
As razões da UDF
Explica Reis (1970, p.89) que foram
influências culturais reconhecidas pela elite brasileira as de nacionalidade
portuguesa (a Universidade de Coimbra), as de nacionalidade inglesa, francesa,
alemã e posteriormente a norte-americana. O fato de buscar no continente
europeu a cultura que se desejava imprimir, não era de modo algum inesperada.
Contratou o reitor Afrânio Peixoto vários
professores, em sua grande maioria de nacionalidade francesa, para lecionar
diferentes disciplinas e construir uma trajetória institucional de pesquisa
para alunos e docentes brasileiros. Eles eram profissionais reconhecidos na
França e deram um impulso significativo às disciplinas que vieram lecionar.
Vinham com a chancela do governo francês, prontos a contribuir
significativamente para a UDF.
Foram contratados e selecionaram livros: Émile Viktor Leinz
(Mineralogia e Geologia), Bernard Gross (Física), Èugene Albertini, Henri
Hauser e Henri Tronchon (História), Étiene Souriou (Psicologia e Filosofia),
Jean Bourcieuz (Filologia das Línguas Românticas), Jaques Perret (Línguas e
Literatura Greco-romanas), Pierre Deffontaine (Geografia) e Robert Garric
(Literatura), Jean Bourcieuz (Filologia das Línguas Românticas), dentre outros professores.
Era parte do
paradigma anisiano que alunos e professores e, também, a intelectualidade
extramuros, tomasse contato com os saberes que, na Europa, se modificavam em
razão dos novos tempos de industrialização, ideologias e consumo[12].
Assim se institucionalizava a pesquisa
mudando o eixo cultural brasileiro. Novamente alinhavam-se os interesses
franceses que não desejavam perder espaço para a Itália, a Alemanha ou os
norte-americanos no Brasil.
A biblioteca da Universidade do Distrito Federal foi organizada
de modo a
tornar-se sinônimo de instrumento
político de transformação e estratégia de intervenção[...] na luta pela
imposição de determinadas representações no campo da cultura e educação [...]
(MOGARRO, 2011, p.175)
A biblioteca corporificou,
deste modo, a necessidade e os princípios da instituição como promotora da
solidariedade entre os professores, em ação e em pensamento, que socializava a
cultura, socializando, também, os meios de adquiri-la. Assim, era pertinente
que ali se transmitisse a cultura do que se considerava moderno e civilizado.
Dicotomia
ou complementaridade?
Tanto a Universidade de São Paulo (USP), criada em
1934, como a Universidade do Distrito Federal (UDF), organizada em 1935 no Rio
de Janeiro, foram, até certo ponto, esforços institucionais para atender aos
anseios de modernização expressos pelos intelectuais e educadores na segunda
metade da década de 20, quando houve um vigoroso debate nacional sobre a
educação que nos convinha, com a destacada participação dos partidários
da escola nova. (VICENZI, 1986, p.2)
A criação da Universidade do Distrito
Federal (UDF),[13]
uniu esforços intelectuais para imprimir na nova empreitada: a
institucionalização da cultura, através das pesquisas sobre o Brasil; uma nova
metodologia a partir dos conceitos da Escola Nova; experimentos da integração
com outros intelectuais e valorização da ciência através da biblioteca
universitária. Foram esforços brasileiros e franceses, cada um com seu próprio
objetivo: idealista ou pragmático, que alinhados, mudaram o eixo cultural e
deixaram influências marcantes para as gerações posteriores.
Havia interesse francês em, principalmente
depois da guerra, fazer da cultura sua propaganda política, criando uma simbiose perfeita de tal forma que os
franceses, professores, escritores, cientistas, enfim, se tornassem «embaixadores» (SUPPO, 2000, p.311).
Em 1932, a questão da propaganda francesa tornou-se obsessiva até por
conta da complexa política na Europa, após o Tratado de Versalhes.
Interessa destacar o paradigma defendido
pela Associação Brasileira de Educação (ABE) e Associação Brasileira de Ciência
(ABC) e implementado na UDF, e as pretensões políticas francesas que se
alinhavam na reforma educacional anisiana[14]: a
criação de uma universidade que, em sendo, um
lugar de liberdade, possibilitasse aos que ali ensinassem e aos que ali
aprendessem sua futura profissão de educador, ser o fino escól da humanidade para quem a vida só vale pelos ideais que a
alimentam (TEIXEIRA,1935).
Para a França, a UDF era um espaço
importante a ser conquistado, visto que a colônia francesa não era numerosa no
Brasil e a elite era consumidora de produtos franceses. Por isso era relevante
que, no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, onde estava concentrada a
elite intelectual, se falasse francês, o que cotidianamente ocorria para
parecer ser culto. A meta era que se pudesse ler em francês para entender e
assimilar a cultura francesa. O melhor lugar para que estes objetivos fossem
implementados eram as universidades que se estavam criando,
principalmente uma universidade no centro cultural do país.
Para a França a cultura estava dentro de seu complexo
sistema de propaganda que fazia o país manter e conquistar aliados no
pós-guerra. Este sistema incluía os professores que, por nacionalismo ou
ascensão profissional, se predispunham a propagandear a França, comercial ou
culturalmente, em busca de aliados.
Mesmo tendo ido a Lisboa inicialmente, e depois, em busca
de judeus que já haviam sido cooptados por ingleses e americanos, como explica
Afrânio Peixoto em correspondência a Anísio Teixeira, o reitor da UDF viajou
com um propósito: contratar docentes europeus que pudessem ensinar aos futuros
professores secundaristas e universitários e também atualizar aqueles que já
trabalhavam, sem a devida experiência europeia, institucionalizando a cultura.
A Europa, a França especialmente, era o símbolo do mundo civilizado. A França
tinha todo o interesse de cedê-los: eram os embaixadores: aqueles que divulgariam e expandiriam o futuro apoio à
França.
Mas não seria suficiente a tática da UDF
de, com os contratados, limitar os conhecimentos trazidos por eles aos muros da
universidade. Era importante partilhar, legitimar a Universidade, o que interessava também a França.
A universidade era, no paradigma anisiano,
o espaço da liberdade, da congregação, o que unia perfeitamente ambos os
interesses, ainda que idealistas, de um lado e pragmáticos do outro. Era
necessário que a UDF pudesse imprimir modernidade, civilização e refinamento de
modo a tornar -se uma universidade promotora de cultura. Era parte deste
paradigma que alunos e professores e, também, a intelectualidade extramuros,
tomasse contato com os saberes, que na Europa se modificavam em razão dos novos
tempos de industrialização, ideologias e consumo[16]. Assim se institucionalizava a pesquisa,
mudando o eixo cultural brasileiro, apoiada numa tradição de tornar a formação
docente uma missão inovadora (PINTASSILGO, 2011).
Novamente alinhavam-se os interesses
franceses que não desejavam perder espaço para a Itália, a Alemanha ou os norte-americanos
no Brasil, e estar presente, de forma concreta nos livros que subsidiavam a
formação destes docentes era, talvez, mais importante do que apenas ter alguns
poucos professores não-franceses (italianos e alemães) como incentivadores e
ministradores de uma “nova” metodologia voltada a pesquisa.
Conta-nos Schwartzman (2001, p.13) que por não existirem
instalações na nova Universidade que se constituía para os laboratórios e
experimentos de pesquisa, os alunos visitavam e pesquisam em várias instituições
brasileiras e tinham contato com intelectuais brasileiros e europeus de outros
países. Frequentavam, dentre outros, Leinz, geólogo alemão, no Departamento Nacional de
Produção Mineral; os laboratórios
de Lauro Travassos, em Manguinhos; o alemão Viktor Gross, no Instituto Nacional
de Tecnologia. Observavam as pesquisas mais recentes e as experiências em
andamento. Era a integração pretendida entre a intelectualidade, através da
Universidade do Distrito Federal, conforme a proposta de Anísio Teixeira. Mas,
o que observavam pragmaticamente, era lido e compartilhado nos livros da
biblioteca universitária composta por autores franceses.
Tais contatos entre não franceses e
estudantes, no entanto, naquele momento político, não interessavam à França,
que, de certa forma, sentia que perdia, com cada alemão ou italiano, que os
estudantes entrassem em contato, um pouco de sua influência cultural.
Assim, embora com objetivos diferenciados,
e até dicotômicos, a UDF teve suas atividades bem sucedidas porque houve, naquele
momento, complementaridade de ações, unindo o sonho, o ideal e outros valores
apoiados por uma “nova” forma de educar, aos interesses de uma nação preocupada
em estabelecer novas alianças em um mundo conturbado após a primeira guerra
mundial e as consequências para a França do Tratado de Versalhes.
Bibliografia francesa:
doação e sugestão
Em 4 de maio de 1936, o bibliotecário acusou
o recebimento, através do relatório nº7/BU, de 472 obras, doação da
Universidade de Paris, intermediada pelo professor contratado Èmile Bréhier.
Ainda no mesmo ano, segundo o relatório nº
17/BU de 11 de junho, a UDF recebeu, ainda da Universidade de Paris, por
intermédio dos professores contratados Henri Hause e Gaston Leduc, pacotes de
livros que incluíam, dentre outras obras, Les
Origines Historiques des Problè Économiques Actels, de Henri Hauser; Manuel du Baccalauréat (seconde partie),
Serie Philosophie, de Pierre Janet;
Les causes de la guerre mondiale, de Camille Bloch.
Gastão
Cruls, em 1937, apresenta a reitoria a escolha deste bibliotecário frente aos
catálogos de livros franceses (Relatório nº 13-BU de 11 de agosto), no valor de
70.000 francos, em generosa oferta do
Governo francês à nossa Universidade, conforme relatório 139/RU de 29 de
julho de 1937.
Tal quantia
foi posta a disposição da Universidade pela França, como doação, a alguns institutos e bibliotecas de países
estrangeiros (ibidem) para escolha de livros a partir de catálogo enviado pela Embaixada (ibidem).
Os livros
franceses, escolhidos por catálogo, vieram do Ministério das Relações
Exteriores da França, por intermédio do Professor Philippe Arbos (Relatório de
13 de julho de 1937 nº 10/BU), por um pagamento total de 2.025 francos, pagos
por cheque do Banco do Brasil, do fundo, e da conta particular de Affonso Penna Júnior,
de acordo com a fatura de Roberto Alvim Corrêa. Foram entregues à Rua do
Catete, 147.
Em 12 de
agosto de 1937, mais uma vez o bibliotecário Gastão Cruls encaminhou à
reitoria, através do relatório nº 14/ BU, a relação de livros recebidos.
Concluir
ouvindo vozes
A
intelectualidade brasileira recebeu significativa influência dos franceses que,
como «embaixadores» de seu país, aqui atuaram como professores, dentro e fora da UDF. Estes
professores, assim como o bibliotecário Gastão Cruls trouxeram, para a
biblioteca da Universidade do Distrito Federal as vozes francesas,
representando a cultura, considerada à época, a modernidade, a civilização e a
universalidade. No momento em que a França participou desta «troca» cultural havia interesses nacionais de continuar uma
política iniciada no início do século, e alargada, a partir de Versalhes, de
empreender, propagandística e politicamente, um alinhamento considerado
necessário, especialmente com os países da América do Sul, o que foi feito nas
novas universidades que estavam sendo criadas: a Universidade de São Paulo e a
Universidade do Distrito Federal.
A criação destas universidades
brasileiras, fez com que se alinhassem França e a elite intelectual brasileira,
ainda que seus objetivos não fossem os mesmos. Pelo
que pude depreender, a matriz francesa e o idealismo de Anísio Teixeira se
complementaram, assim como as pretensões para a UDF e a expansão, como
política, da francofilia.
A biblioteca da UDF foi a materialização da política externa
francesa, tanto em termos editoriais de aumento da produção e circulação de
livros, quanto pedagógica de, em difundindo a cultura francesa, obter, em
futuro próximo, novos aliados fora do eixo europeu.
Ainda que a
UDF tivesse sido uma experiência de curta duração, é inegável, que a meta de
institucionalizar a pesquisa foi alcançada, mesmo que não exatamente como
planejado pelos franceses em sua política propagandística de alinhamento. Mas
os franceses tiveram com essa experiência, do contrato de aulas às
conferências, e mais ainda com a formação e circulação de conhecimentos
expostos na biblioteca universitária, uma influência sólida que perdurou muito
tempo após a extinção da UDF na elite intelectual brasileira, ainda não
analisada devidamente pela historiografia, como observaram Suppo (2000) e
Venâncio Filho (1997).
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Grandes Cientistas Sociais, vol.39São
Paulo: Ática, 1983 pp. 156-183
CEMI.UDF. Listagem de
número de aulas. Professores contratados
UDF. Anexo 5
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Hauser. Manuscrito.Em
francês.
____ UDF. Correspondência de Henri Hauser
ao Reitor. 13 de abril de 1936. Manuscrito. Em francês.
____ UDF. Sumário das Conferências realizadas no Rio de Janeiro pelo Exmo.
Snr. Professor Henri Hauser. Academia Brasileira de Letras (manuscrito)
_____UDF. Programa do curso de História Moderna e Econômica. Professor H.
Hauser. s/data
____ UDF. Escola de Economia e Direito. Programa do curso de Historia Moderna
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___ UDF. Relatórios da Biblioteca: nº 7 de 19 de maio de 1938; nº 10vde 13
de julho de 1937; nº 13cde 11 de agosto
de 1937; nº 14 de 12 de agosto de 1937
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professor de História na Universidade do Distrito Federal (1935-1939) Educ. foco, Juiz de Fora, v. 15, n. 2,
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Eram nomeadas instituições complementares, segundo o
mesmo artigo 3 do Decreto 5.513/1935: a Biblioteca Central de Educação; a Escola-Rádio; a
Escola Secundária do Instituto de Educação; a Escola Elementar do Instituto de
Educação; o Jardim de Infância do Instituto de Educação; uma escola secundária
técnica; uma escola elementar experimental; uma escola maternal; e laboratórios
e clínicas dos hospitais do Distrito Federal.
Anísio Teixeira fez parte de uma geração de
intelectuais cuja preocupação maior, na primeira metade do século XX, foi
organizar a nação e forjar o povo através de uma cultura que procurava
assegurar a sua
unidade pela instrução
pública, pela reforma do ensino e pela construção de um campo cultural a partir
da universidade. Essa preocupação levou-o, como outros educadores que lhe foram
contemporâneos, a uma relação contraditória com o Estado. (NUNES, 2000, p.13) Anísio
Teixeira foi personagem central na educação brasileira nas décadas de
1920/1930. Adepto do movimento da Escola Nova, fez reformas educacionais na
Bahia e Rio de Janeiro. Criou a Universidade do Distrito Federal em 1935,
quando era Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal. Ver também sobre o
educador INEP. Biobibliografia de Anísio Teixeira. Revista brasileira de Estudos pedagógicos,
Brasília, v. 82, n. 200/201/202, p. 207-242, jan./dez. 2001 e ROCHA,
João Augusto de Lima. Referências
à Revolução na Obra de Anísio Teixeira. Brasília:
Revista de Pedagogia, Universidade de Brasília, ano 2 – número 4 – Terceiro
especial sobre Anísio Teixeira e sobre ideais anisianos FÁVERO, Maria de Lourdes. A. Universidade e poder. Rio
de Janeiro: Achiamé, 1980; MENDONÇA, Ana Walesca. Anísio Teixeira e a
universidade de educação. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001 e PAIM, Antonio. UDF
e a Ideia de Universidade. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1981.
Ver também FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. A
UDF, sua vocação política e científica: um legado para se pensar a universidade
hoje. Pro-Posições. v. 15. n. 3 (45) set./dez. 2004
Criada pelo Decreto
nº 5.513 de 4 de abril de 1935. Para maiores informações sobre as
universidades de curta duração, como a UDF, que foi extinta em 1939 para dar
lugar à Universidade do Brasil, ver também como importantes
referências os trabalhos: CUNHA, L. A. C. R. A Universidade Temporã - O Ensino Superior da Colônia A Era de Vargas, Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1980; CUNHA, Luiz Antonio. «Ensino Superior e a Universidade
no Brasil» In: TEIXEIRA, Eliane Marta; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA,
Cynthia Greive. 500 anos de educação no
Brasil, Belo Horizonte: Autêntica, 2007
Ver também FÁVERO, 2004.op.cit